A Prancha
Parte 1 - Serra Abaixo
Vestida com uma saída de banho de crepe meio transparente,
translucidava um sexy biquíni verde-limão sobre sua pele bronzeada. Ela era de
etnias heterogêneas. Os olhos orientais e a pele amorenada puxara do pai. O
cabelo louro meio crespo da mãe esvoaçava ao vento. Ema estava ainda mais linda
naquela madrugada.
Preto, meu primo e irmão, ainda estava na cozinha preparando seu
café enquanto eu a recebia no portão. Não precisei abrir. Ela conhecia o
segredo da cordinha que puxava o trinco. Ema era de casa.
Todos nós, garotos da classe, fomos meio apaixonados por Ema.
Ao mesmo tempo, muito inseguros para fazer qualquer investida amorosa. Ela, como
qualquer outro garoto da turma, nos tratava de igual para igual e talvez isso
fosse o que mais nos encantasse. Ema encarnava “mais um dos moleques” da turma no
corpo de uma linda e sensual ninfa.
Seria a primeira viagem sem nossos pais. Éramos todos surfistas
muito ativos nas férias e feriados, mas, nos finais de semana corriqueiros, raramente
saíamos do marasmo febril da cidade grande para o agito refrescante das ondas.
Pelo rádio, “A Cor do Som” foi interrompida pelo noticiário
das condições do mar. As ondas prometiam um passeio eletrizante. A primeira
bateria de um torneio de surfe aconteceria na praia de Pitangueiras e a gente
queria dar uma bicada por lá.
Preto
Ô Raiz, acho que vai dar tudo
certo. Ah? Oi, Ema!. Já liguei pros caras no Guarujá e peguei o endereço da
oficina do Jeff Mentor. Ele falou que está esperando a gente lá pelas 10. Desse
mês, minha prancha nova não passa. Vou arrasar nas férias.
Raiz sou eu. Não me pergunte
de onde minha mãe tirou esse nome. Ela era da geração hippie e prefiro não
analisar sob quais circunstâncias essa idéia lampejou em sua mente. Comecei a
surfar quando tinha uns 12 anos. Preto, dois anos mais moço, ainda não tinha, naquela
época, permissão de sua mãe, minha tia e madrasta.
Ele era um surfista novato com menos experiência e traquejo.
Eu fazia Salto Ornamental e tinha muito jeito com a água. Comecei a dominar as
ondas muito rápido e levei no rastro um monte de amigos. Éramos todos
discípulos do Marcão, um guru caiçara que morava numa casa de taipa na praia da
Baleia.
Temos, Preto e eu, uma história diferente e entrelaçada por
um esquisito destino.
·
Meu pai, Carlos, se casou pela segunda vez com a
mãe de Preto, tia Yara, irmã de criação de minha falecida mãe, Wanda.
·
Minha mãe e meu tio, Luiz, primeiro marido de
tia Yara, haviam sofrido um acidente fatal de avião.
·
Minha tia Yara era filha de dona Gerda, uma
antiga governanta alemã de vovô Jorge e vovó Vita.
·
O pai, um capoeirista baiano, a abandonara
quando “freulein” Gerda ficou grávida.
·
Meus avós pegaram tia Yara, ainda bebê, para criar
depois do falecimento da aia.
Nossa relação fraterna sempre foi de amizade explícita, admiração
e de competição velada por parte dele. Acho que por não termos a mesma condição
e exata origem, sua cabeça deu uma pirada quando meu pai e minha tia resolveram
se casar. Teve dificuldade em se adaptar a essa situação diferente. O tio virar
padrasto, o primo virar irmão de criação, a mãe virar minha madrasta. Mais
velho, mais forte e melhor aluno estudava na mesma sala que ele num colégio experimental
com poucas classes do Instituto Nacional de Biologia onde nossos pais eram
pesquisadores. Acho que se sentia competitivo. Algo que, sob alguns aspectos, acabou
sendo positivo para ele.
Preto precisava comprar aquela prancha. Pensou, imagino, que
uma nova prancha bacana o faria se sentir melhor surfista. Sei lá! Tudo é tão
confuso nessa fase da vida da gente.
Eu não perdi a oportunidade e, depois de tentar demovê-lo da
idéia de consumo, comprei sua prancha velha que seria, em ondas menores e mais
gordas, um bom suplemento para a minha.
Para passar a noite, resolvemos pedir emprestada a casa de
uma tia avó, uma das últimas na praia de Astúrias. Planejamos viajar para o
litoral naquele sábado de Outubro bem depois da semana do saco cheio para não
pegar o Guarujá tão lotado. Cedinho encomendaríamos a prancha e depois iríamos
surfar o dia todo. No dia seguinte, se preciso, faríamos uma nova visita à loja
do Jeff Mentor, o melhor “shaper” do Brasil, um jamaicano de Miami. Depois, mar
e viagem de volta para Sampa.
Shitake, apelido de Mário Sérgio Hitake, era irmão gêmeo de
Ema. O codinome havia sido dado pelo Marcão que viajara o mundo num navio
cargueiro e já conhecia esse e outros cogumelos, digamos, exóticos.
Os gêmeos eram meio-japas. O pai, comerciante de Mogi, era daqueles
nisseis de pele escura polinésia herdada de seus ancentrais de Okinawa. A mãe, uma
gaúcha de Santa Maria, tinha ascendência alemã.
Tio Takeo só deixava a filha viajar com a gente por que o Shitake
estava junto. Os irmãos, além de surfistas, eram faixas pretas de judô como o
pai. Tinham casa num sítio lá perto do condomínio da Baleia onde nossas
famílias passavam as férias e feriados.
Conhecemos-nos na praia durante as férias do verão de 1973.
O tio Takeo, havia comprado uma propriedade perto do pé da serra com a intensão
de expandir seus negócios de hortaliças para o litoral que, em sua idéia
visionária, tinha grande futuro. Com a amizade, veio o plano, estimulado por
meu pai, de transferir a família para Sampa a fim de que os filhos pudessem
estudar em melhores escolas.
Shitake chegou com nosso motorista, o Seu Sid, um gorducho
bonachão de sorriso dourado. Seu Sid havia sido contratado por vovô Jorge para
servir minha avó que ficara muito debilitada com a morte de minha mãe. Também, depois
do almoço, nos levava para o colégio, junto com os dois “ninjitas”, para não atrapalhar
a intensa rotina de trabalho de nossos pais. Com o tempo ficamos ligados a Seu
Sid, um sujeito muito legal e atencioso que fazia tudo para nos ajudar.
O motor emperrou. Seu Sid pelejou, pelejou e nada. Parece que
a vela estava suja e não tinha cristo que concertasse. Naquela hora ia ser
difícil achar qualquer mecânico aberto. O Preto não se entregou. Entrou nas “Catacumbas
de Matusalém”, um quartinho nos fundos do quintal onde meu pai guardava todas
as suas tranqueiras que não serviam para mais nada além de tomar espaço. A
gente só ouvia os xingamentos e a barulhada das coisas sendo jogadas de um lado
para outro.*
De repente, todo empoeirado, Preto saiu de lá com um caixotinho
nas mãos.
Preto
Lembrei que o tio tinha aquela
“Harley” velha encostada lá dentro. Imaginei que podia ter uma vela sobrando
nela. Não tinha, mas olha o que eu achei bem do lado.
Abriu a caixa que tinha um monte de velas novinhas dentro.
Preto sempre foi uma cara de enfiar uma coisa na cabeça e
seguir em frente até conseguir. Às vezes como mula, empacava na idéia. Crescemos
sob o paradigma científico da análise e busca. Nossos pais nos ensinaram que, com
critério, é muito importante correr atrás dos sonhos. Que nada cai do céu. Preto
gostava da busca, mas não era muito "chegado na" análise. Muitas
vezes se fiava na sorte. Não raro, exagerava no segundo conceito e se
prejudicava por falta da flexibilidade de escolha que o primeiro proporciona.
Ele havia economizado meses para poder comprar aquela
prancha e não havia argumento contra que o demovesse. Eu tentara em vão. Preto ainda iria crescer bastante.
Se encomendasse uma prancha naquele momento, era provável que a perdesse em
menos de um ano.
Ele convenceu nossos pais a permitir essa empreitada. Muito
cedo já tinha uma lábia incrível. Sabia usar os argumentos certos, nas horas
certas, com as pessoas certas.
Colocamos os racks, com as pranchas, e as mochilas na perua Veraneio e
zarpamos, Serra do Mar abaixo, rumo ao litoral paulista.
*Não precisa estranhar,
caro leitor. Nossos pais não acordam nem com reza brava.
Nenhum comentário:
Postar um comentário