14 de nov. de 2012

A Prancha - Parte 1 - Serra Abaixo


A Prancha

Parte 1 - Serra Abaixo

Vestida com uma saída de banho de crepe meio transparente, translucidava um sexy biquíni verde-limão sobre sua pele bronzeada. Ela era de etnias heterogêneas. Os olhos orientais e a pele amorenada puxara do pai. O cabelo louro meio crespo da mãe esvoaçava ao vento. Ema estava ainda mais linda naquela madrugada.

Preto, meu primo e irmão, ainda estava na cozinha preparando seu café enquanto eu a recebia no portão. Não precisei abrir. Ela conhecia o segredo da cordinha que puxava o trinco. Ema era de casa.

Todos nós, garotos da classe, fomos meio apaixonados por Ema. Ao mesmo tempo, muito inseguros para fazer qualquer investida amorosa. Ela, como qualquer outro garoto da turma, nos tratava de igual para igual e talvez isso fosse o que mais nos encantasse. Ema encarnava “mais um dos moleques” da turma no corpo de uma linda e sensual ninfa.

Seria a primeira viagem sem nossos pais. Éramos todos surfistas muito ativos nas férias e feriados, mas, nos finais de semana corriqueiros, raramente saíamos do marasmo febril da cidade grande para o agito refrescante das ondas.

Pelo rádio, “A Cor do Som” foi interrompida pelo noticiário das condições do mar. As ondas prometiam um passeio eletrizante. A primeira bateria de um torneio de surfe aconteceria na praia de Pitangueiras e a gente queria dar uma bicada por lá.

Preto
Ô Raiz, acho que vai dar tudo certo. Ah? Oi, Ema!. Já liguei pros caras no Guarujá e peguei o endereço da oficina do Jeff Mentor. Ele falou que está esperando a gente lá pelas 10. Desse mês, minha prancha nova não passa. Vou arrasar nas férias.
Raiz sou eu. Não me pergunte de onde minha mãe tirou esse nome. Ela era da geração hippie e prefiro não analisar sob quais circunstâncias essa idéia lampejou em sua mente. Comecei a surfar quando tinha uns 12 anos. Preto, dois anos mais moço, ainda não tinha, naquela época, permissão de sua mãe, minha tia e madrasta.

Ele era um surfista novato com menos experiência e traquejo. Eu fazia Salto Ornamental e tinha muito jeito com a água. Comecei a dominar as ondas muito rápido e levei no rastro um monte de amigos. Éramos todos discípulos do Marcão, um guru caiçara que morava numa casa de taipa na praia da Baleia.

Temos, Preto e eu, uma história diferente e entrelaçada por um esquisito destino.

·         Meu pai, Carlos, se casou pela segunda vez com a mãe de Preto, tia Yara, irmã de criação de minha falecida mãe, Wanda.
·         Minha mãe e meu tio, Luiz, primeiro marido de tia Yara, haviam sofrido um acidente fatal de avião.
·         Minha tia Yara era filha de dona Gerda, uma antiga governanta alemã de vovô Jorge e vovó Vita.
·         O pai, um capoeirista baiano, a abandonara quando “freulein” Gerda ficou grávida.
·         Meus avós pegaram tia Yara, ainda bebê, para criar depois do falecimento da aia.

Nossa relação fraterna sempre foi de amizade explícita, admiração e de competição velada por parte dele. Acho que por não termos a mesma condição e exata origem, sua cabeça deu uma pirada quando meu pai e minha tia resolveram se casar. Teve dificuldade em se adaptar a essa situação diferente. O tio virar padrasto, o primo virar irmão de criação, a mãe virar minha madrasta. Mais velho, mais forte e melhor aluno estudava na mesma sala que ele num colégio experimental com poucas classes do Instituto Nacional de Biologia onde nossos pais eram pesquisadores. Acho que se sentia competitivo. Algo que, sob alguns aspectos, acabou sendo positivo para ele.

Preto precisava comprar aquela prancha. Pensou, imagino, que uma nova prancha bacana o faria se sentir melhor surfista. Sei lá! Tudo é tão confuso nessa fase da vida da gente.

Eu não perdi a oportunidade e, depois de tentar demovê-lo da idéia de consumo, comprei sua prancha velha que seria, em ondas menores e mais gordas, um bom suplemento para a minha.

Para passar a noite, resolvemos pedir emprestada a casa de uma tia avó, uma das últimas na praia de Astúrias. Planejamos viajar para o litoral naquele sábado de Outubro bem depois da semana do saco cheio para não pegar o Guarujá tão lotado. Cedinho encomendaríamos a prancha e depois iríamos surfar o dia todo. No dia seguinte, se preciso, faríamos uma nova visita à loja do Jeff Mentor, o melhor “shaper” do Brasil, um jamaicano de Miami. Depois, mar e viagem de volta para Sampa.

Shitake, apelido de Mário Sérgio Hitake, era irmão gêmeo de Ema. O codinome havia sido dado pelo Marcão que viajara o mundo num navio cargueiro e já conhecia esse e outros cogumelos, digamos, exóticos.

Os gêmeos eram meio-japas. O pai, comerciante de Mogi, era daqueles nisseis de pele escura polinésia herdada de seus ancentrais de Okinawa. A mãe, uma gaúcha de Santa Maria, tinha ascendência alemã.

Tio Takeo só deixava a filha viajar com a gente por que o Shitake estava junto. Os irmãos, além de surfistas, eram faixas pretas de judô como o pai. Tinham casa num sítio lá perto do condomínio da Baleia onde nossas famílias passavam as férias e feriados.

Conhecemos-nos na praia durante as férias do verão de 1973. O tio Takeo, havia comprado uma propriedade perto do pé da serra com a intensão de expandir seus negócios de hortaliças para o litoral que, em sua idéia visionária, tinha grande futuro. Com a amizade, veio o plano, estimulado por meu pai, de transferir a família para Sampa a fim de que os filhos pudessem estudar em melhores escolas.

Shitake chegou com nosso motorista, o Seu Sid, um gorducho bonachão de sorriso dourado. Seu Sid havia sido contratado por vovô Jorge para servir minha avó que ficara muito debilitada com a morte de minha mãe. Também, depois do almoço, nos levava para o colégio, junto com os dois “ninjitas”, para não atrapalhar a intensa rotina de trabalho de nossos pais. Com o tempo ficamos ligados a Seu Sid, um sujeito muito legal e atencioso que fazia tudo para nos ajudar.

O motor emperrou. Seu Sid pelejou, pelejou e nada. Parece que a vela estava suja e não tinha cristo que concertasse. Naquela hora ia ser difícil achar qualquer mecânico aberto. O Preto não se entregou. Entrou nas “Catacumbas de Matusalém”, um quartinho nos fundos do quintal onde meu pai guardava todas as suas tranqueiras que não serviam para mais nada além de tomar espaço. A gente só ouvia os xingamentos e a barulhada das coisas sendo jogadas de um lado para outro.*

De repente, todo empoeirado, Preto saiu de lá com um caixotinho nas mãos.
Preto
Lembrei que o tio tinha aquela “Harley” velha encostada lá dentro. Imaginei que podia ter uma vela sobrando nela. Não tinha, mas olha o que eu achei bem do lado.
Abriu a caixa que tinha um monte de velas novinhas dentro.

Preto sempre foi uma cara de enfiar uma coisa na cabeça e seguir em frente até conseguir. Às vezes como mula, empacava na idéia. Crescemos sob o paradigma científico da análise e busca. Nossos pais nos ensinaram que, com critério, é muito importante correr atrás dos sonhos. Que nada cai do céu. Preto gostava da busca, mas não era muito "chegado na" análise. Muitas vezes se fiava na sorte. Não raro, exagerava no segundo conceito e se prejudicava por falta da flexibilidade de escolha que o primeiro proporciona.

Ele havia economizado meses para poder comprar aquela prancha e não havia argumento contra que o demovesse. Eu tentara em vão. Preto ainda iria crescer bastante. Se encomendasse uma prancha naquele momento, era provável que a perdesse em menos de um ano.

Ele convenceu nossos pais a permitir essa empreitada. Muito cedo já tinha uma lábia incrível. Sabia usar os argumentos certos, nas horas certas, com as pessoas certas.

Colocamos os racks, com as pranchas, e as mochilas na perua Veraneio e zarpamos, Serra do Mar abaixo, rumo ao litoral paulista.



*Não precisa estranhar, caro leitor. Nossos pais não acordam nem com reza brava.

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